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ARTIGO: Coronavírus, pandemia e a morte de si mesmo, por Vitor Paiva, ofs

Geral

“A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica"

Publicação: 26/03/2020


Texto: Victor Paiva, ofs

Em tempos de pandemia, libertamos descaradamente o nosso sempre companheiro medo da morte. Tememos por nossa vida. Tememos pela vida daqueles que amamos. Sobretudo, quando a arma está apontada direto para os que são nossas bases: mães, pais, avós, avôs, nossos idosos. 

A amargura é acentuada quando vemos o desprezo pela vida dos anciãos partindo, justamente, daquele que deveria ser o primeiro em sua defesa: o presidente da república. E por quê?

A justificativa é simples, feita em uma língua global, compreendida por todos e falada por poucos: para proteger a economia. Em tempos de pandemia, o poder econômico liberta descaradamente o seu sempre companheiro medo da recessão. Teme pela bolsa. Teme pelo capital de giro. Teme pela redução dos zeros.

“Esta economia mata”, denuncia o Papa Francisco na sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (n. 53). “A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral.” Evangelii Gaudium (n. 53).

O deus-dinheiro anseia por sacrifícios humanos e nosso país se prepara para obedecê-lo. Primeiro, ofertamos nossos idosos, guardiões da memória e da cultura, dos valores e das humanidades. Depois, os doentes, ainda que jovens, pois mais custam do que produzem. Enfim, aqueles que já nem se pode justificar. “Para defender este sistema econômico idolátrico chega-se a instaurar a ‘cultura do descarte’” (Papa Francisco. Encontro com os Trabalhadores, Cagliari. 2013).

Muitos idosos estão morrendo, vítimas do coronavírus no mundo; muitos poderão morrer no Brasil se imperar a imprudência. Mas eles não morrem sozinhos. Com eles vão nossos afagos, nossas compreensões; nossas ligações não planejadas e as mais diversas e cotidianas perguntas que nos tornam humanos: você está bem? Você já comeu? Não está na hora de dormir? Com eles morrem as “estórias” engraçadas, a já escassa ternura e as mais doces palavras que pode alguém pronunciar: “mãe”, “pai”, “vô”, “vó”.

Com eles, vai o mais vivo sentido de fé, de confiança, relação e abandono em Deus; vai a sabedoria que só cabe no livro da vida. Neles, morrem nossas lembranças, as memórias de família que formam identidade. Não há história sem memória. Não há identidade sem história. O que a história contará? Que matamos a memória para ganhar tantos tostões? Que nos suicidamos nos rostos do que seriamos amanhã, se nos sobrasse humanidade?

É preciso dizer não à “cultura do descarte”; não à morte da memória; não às raízes arrancadas; não ao fim da humanidade que nos resta!



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